OPINIÃO
Por Nelio Fernando dos Reis, Ph.D.*
A recente tarifaço imposto pelos Estados Unidos contra produtos brasileiros — atingindo aço, fertilizantes, minerais estratégicos e bens industriais — escancarou um vazio crônico da política nacional: o Brasil não pensa estrategicamente.
Enquanto as grandes potências moldam suas políticas comerciais a partir de critérios de segurança energética, autonomia tecnológica e domínio das cadeias produtivas, o Brasil reage com surpresa, notas diplomáticas e improviso técnico.
Não estamos diante de um episódio isolado. Estamos diante da confirmação de que o mundo entrou em uma nova era: a era da soberania produtiva e da guerra econômica estratégica. Nações com inteligência institucional agem para proteger suas capacidades industriais e científicas. Nações sem estratégia — como o Brasil — tornam-se meros fornecedores de matéria-prima e alvos de tarifaços.
O problema é estrutural. O país segue sem planejamento de longo prazo, sem articulação entre ciência, defesa e indústria, e sem cultura estratégica difundida na população. O cidadão médio brasileiro não sabe o que são terras raras, não conhece a importância do lítio ou do urânio, e nunca ouviu falar em cadeia dual-use. Isso não é culpa do povo. É resultado de décadas sem projeto nacional — e sem instituições que articulem saber técnico com decisão política.
Em países que levam a sério, essa articulação tem nome: think tank .
Nos Estados Unidos, a RAND Corporation, o CSIS e a Brookings Institution moldam políticas públicas há décadas. Produzem cenários, relatórios, análises geopolíticas e propostas legislativas que impactam diretamente o Congresso, o Pentágono e o Departamento de Estado. Na China, o CASS e o CICIR atuam como braços intelectuais do Partido Comunista, orientando estratégias industriais, tecnológicas e militares com décadas de antecipação. Na Índia, o NITI Aayog serve como cérebro de Estado, integrando planejamento industrial e educacional. Em Israel, o INSS conecta Forças Armadas, universidades e empresas tecnológicas em um ecossistema nacional de discussão e inovação.
O país dispõe de algumas instituições respeitadas — como o IPEA (diagnóstico socioeconômico), a ESG (planejamento de defesa), a FUNAG (diplomacia), a FGV (pesquisa aplicada) e o CEBRI (relações internacionais) — mas nenhuma delas atua de forma integrada, independente e soberana para articular os ativos nacionais em torno de uma doutrina de poder e sobrevivência estratégica.
Enquanto isso, fundações partidárias recebem milhões em recursos públicos sem qualquer compromisso com o debate sobre a soberania. A Fundação Perseu Abramo, vinculada ao Partido dos Trabalhadores, é a mais antiga fundação de um partido nacional, conforme prevê a Lei n.º 9.096/1995. Só em 2024, o PT recebeu aproximadamente R$ 110 milhões do Fundo Partidário, o que implica cerca de R$ 20 milhões anuais destinados à manutenção da fundação, cujo foco é a formação político-ideológica da militância.
Do outro lado do espectro, a Fundação Fernando Henrique Cardoso, associada ao PSDB, ainda conta com recursos de ações empresariais e do Estado na captação por incentivos fiscais. Embora organizem eventos e publicações, nenhuma delas — de fato — se propõe a formular um projeto nacional de poder, tampouco a pensar a defesa e a ciência.
É inaceitável é que não existe no Brasil uma fundação independente, técnica, com vocação soberanista, voltada para pensar o país em escala histórica — e sustentada com a mesma robustez orçamentária.
Faz falta uma instituição que fale com o Legislativo, com as Universidades, com as Forças Armadas, com o setor produtivo e, sobretudo, com o povo brasileiro.
O sociólogo Émile Durkheim escreveu que “uma nação é, antes de tudo, uma consciência moral”. Florestan Fernandes reconheceu que o Brasil só deixaria de ser uma colônia moderna quando articulasse ciência, política e soberania. Foucault alertava que quem controla o discurso, controla o poder. E nós, como país, seguimos sem discurso próprio.
A tarifação é apenas o sintoma. O diagnóstico é a ausência de um centro de pensamento soberano.
Enquanto financiamos fundações ideologizadas com dinheiro público, deixamos descoberto o que é mais estratégico: o cérebro da soberania nacional.
Pensar estrategicamente não é luxo. É sobrevivência.
E no mundo de hoje, quem não pensa, será pensado pelos outros.
* Possui mestrado, doutorado e pós-doutorado em engenharia de produção. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo – IFSP.