OPINIÃO
GUERRA EM ESSEQUIBO: POSSÍVEL SIM; PROVÁVEL, NÃO
Iniciamos o mês de dezembro de 2023 com a eclosão de uma tensão secular latente: o Essequibo permanece com a Guiana ou se incorpora à Venezuela? O início desse imbróglio remonta ao século XIX, desde quando Venezuela e Inglaterra seguem contestando essa área até então com pouco interesse. A partir daí, uma mediação (Laudo Arbitral de Paris em 1899) deu ganho de causa aos ingleses. Veio a independência guianense (1966) e, mais recentemente, despontou a descoberta de enormes riquezas que não se limitam ao petróleo (2015), mas também incluem ouro, diamante, cobre etc.
Vale a pena citar que o Brasil também já teve interesse em parte daquela área. A chamada “Questão do Rio Pirara” foi decidida por uma arbitragem internacional em 1904, delimitando as fronteiras brasileiras com a Inglaterra, que ganhou uma área de aproximadamente 19.600 Km2. Essa derrota, juntamente com a Colônia do Sacramento (perdida para o Uruguai), são os únicos exemplos negativos em nossa vitoriosa história diplomática.
Mas voltando à contenda, muitos especialistas têm se debruçado sobre o tema, não somente direcionados à Essequibo mas também aos reflexos que poderão cair sobre os ombros do Brasil; logo, levantar alguns pontos de reflexão nos campos operacional e geopolítico pode enriquecer um pouco mais o entendimento desse caso.
Olhando para o Essequibo, começamos pelo viés operacional. A região reivindicada pela Venezuela ocupa aproximadamente 70% do território da Guiana (equivale ao estado brasileiro do Ceará), comportando aproximadamente 20 a 30% de sua população. São poucos os núcleos populacionais, espalhados por uma área de mata densa e de difícil acesso. Por sinal, essa floresta ocupa uns 75% de toda a área de Essequibo. Importante registrar que não há ligação terrestre que corte a linha de fronteira entre Venezuela e Guiana.
Após essa rápida contextualização do fator terreno, vamos aos meios. As Forças Armadas venezuelanas são infinitamente superiores às Forças de Defesa guianenses. Em termos de pessoal, estamos falando de uns 150 mil militares contra três mil (50x1). A Venezuela possui blindados, peças de artilharia, helicópteros, aviões e outros meios que superam em muito ao existente na Guiana, se bem que nesse quesito quantidade não é garantia de qualidade. Para a adequada utilização dos meios militares, cresce de importância o seu estado de prontidão, que inclui o nível de manutenção, o preparo e o adestramento de seus operadores etc. Esses materiais venezuelanos são, em sua grande maioria, de origem russa ou chinesa, o que faz acender uma luz amarela quanto ao verdadeiro nível operacional de suas Forças Armadas (basta ver os helicópteros russos de ataque Mi-35 Hind que chegaram no Brasil em 2010 e, após 12 anos, estão fora de serviço).
E como a Venezuela poderia cumprir a sua missão de tomar o Essequibo? Se realmente a conquista da enorme área for levada adiante, existem três maneiras de “atacar, conquistar e manter” a região. Iniciamos pelo modal marítimo, utilizando o oceano Atlântico. Lembrando que essa ação militar de desembarque anfíbio estaria ocorrendo nas barbas dos EUA, essa possibilidade tende a ser desconsiderada. O simples deslocamento de meios navais americanos para a área já bloquearia essa intenção (vejamos o deslocamento naval feito pelo “Tio Sam” na atual guerra Israel x Hamas). Vamos para o modal terrestre. Não há estradas que partem da Venezuela e adentram na Guiana. Esse acesso rodoviário poderia ocorrer através do território brasileiro, por meio da BR-174, que da cidade de Pacaraima chega a cidade de Bonfim, ambas no estado de Roraima (RR). Certamente as Forças Armadas brasileiras se oporão a essa agressão à nossa inviolabilidade territorial (passa a ser questão de soberania nacional), deixando claro que uma decisão contrária nesse caso caberia ao governo brasileiro, a quem deveria se responsabilizar por tal posição perante os cenários nacional e principalmente internacional. Chegamos ao modal aéreo. A superioridade venezuelana nos leva a crer que esse cenário é até exequível para o ataque e a conquista daqueles poucos centros populacionais, no entanto a manutenção desses pontos tende a ser muito onerosa e quase impossível. E não é à toa que os EUA ativaram nesta semana um exercício aéreo sobre Essequibo.
Sem aprofundar esse viés operacional, pode-se inferir que o intento venezuelano de conquistar a área contestada reúne óbices de grande monta, sendo possível, mas não provável.
Permanecemos em o Essequibo, mas agora numa rápida passagem pelo campo geopolítico. Dentre os diversos conflitos existentes atualmente no mundo, vale a pena destacar as guerras Ucrânia x Rússia e Israel x Hamas, sem contar o atrito antigo e latente China x Taiwan. Por mais que possam parecer isolados, sem conexão, esse pensamento deve ser reavaliado, a começar com os principais players envolvidos que são EUA, Europa ocidental, Rússia, China e Irã. A mexida em uma simples peça nesse complexo tabuleiro de xadrez pode levar a mudanças radicais na evolução desses e de outros conflitos.
As Américas são tradicionalmente um grande continente pacífico, pautado pela cooperação entre seus países, bem longe do rufar barulhento dos canhões. Se bem que muitos estudiosos afirmam que vivemos na América Latina uma verdadeira e trágica guerra diária contra o narcotráfico e similares. O último conflito tradicional vivido por aqui foi a quase já esquecida Guerra das Malvinas (Falklands), que acabou com a vitória inglesa e deixou tristes consequências para os nossos irmãos argentinos.
Mas voltando àquelas guerras citadas acima, se observa que a atual geração de conflitos (estamos na 5ª geração, e isso pode ser tema para uma nova discussão) tem muito mais ligação com as expressões política, econômica e social do que mesmo com o poder militar, deixando claro que essa expressão militar não perde em nada (muito pelo contrário) sua relevância principalmente no aspecto dissuasório. Manutenção do poder político nacional, regional e/ou mundial (eleições futuras nos EUA e Rússia), sanções e embargos econômicos, domínio de narrativas etc. são apenas alguns exemplos dessa nova geração de guerra.
E a Venezuela se encaixa nesse perfil. O atual governo Maduro precisa amalgamar uma sociedade que vive num país falido, num verdadeiro caos econômico e social, com eleições no curto prazo. Somente no Brasil, 500 venezuelanos procuram, por dia, a reconhecida Operação Acolhida (Roraima) em busca de dignidade e de um futuro normal para qualquer ser humano. A recente realização do plebiscito visando à anexação de o Essequibo foi um grande engodo governamental. A pressão sobre opositores do atual regime venezuelano segue de vento em popa. A flexibilização de embargos econômicos proporcionada pelos EUA, tendo como contrapartida uma maior correção e transparência nas próximas eleições, segue cambaleando. Mas aí vem o presidente Maduro a público e apresenta, todo orgulhoso, o novo mapa da Venezuela com a área anexada, nomeia um “interventor”, e concede um longo prazo (90 dias) para a regularização da exploração petrolífera pela Venezuela, que afeta diretamente empresas americanas. E qual a conclusão dessa conjuntura geopolítica na Venezuela? Sem esgotar o tema e os exemplos, fica a impressão que a conquista de narrativa de o Essequibo por parte do governo venezuelano já está em curso, longe de algo de concreto vir a acontecer.
Vamos falar um pouco sobre o Brasil nessa situação. Na área operacional, tomando o Ministério da Defesa (Exército) como exemplo, não é de hoje que a garantia da nossa soberania é planejada e executada com total correção. Em todos os 17 mil Km de fronteira terrestre, os principais eixos penetrantes que demandam a áreas e pontos estratégicos no interior do nosso território são vigiados e possuem o mínimo necessário de tropa para possíveis ações iniciais de defesa da nossa inviolabilidade.
Falando na Amazônia brasileira, há décadas que novas tropas são para lá deslocadas, seus efetivos são aumentados, e os seus meios, atualizados. Atualmente servir na nossa Amazônia é desejo e motivo de orgulho para os nossos militares (homens e mulheres).
Em Roraima, por exemplo, há a 1ª Brigada de Infantaria de Selva com três elementos de manobra (dois batalhões de infantaria, cada um com aproximadamente 500 militares, e um esquadrão de cavalaria, com um efetivo médio de 200 militares), além de tropas de apoio ao combate como artilharia, engenharia e comunicações. Isso totaliza em torno de 2.500 homens e mulheres discípulos de Caxias, sem contar com marinheiros e aviadores que também usam a Bandeira do Brasil em seus braços.
Em Pacaraima e Bonfim, debruçados na linha de fronteira, existem os respectivos Pelotões Especiais de Fronteira do Exército, pertencentes àquela 1ª Brigada, cada um com aproximadamente 70 militares; e em Pacaraima, temos o primeiro nível de atuação da Operação Acolhida, com mais militares presentes, oriundos de todo o Brasil, realizando o ordenamento da fronteira e o início do abrigamento oferecido aos nossos irmãos venezuelanos.
Mas quando se fala em Defesa da Pátria, nada é estático. Antecipando o planejamento estratégico já existente, o Exército achou por bem, por exemplo, antecipar a transformação, em Roraima, daquele esquadrão de cavalaria em regimento, passando a ter não mais 200 militares e sim 500 soldados em todos os postos e graduações; o comando dessa tropa de cavalaria passa de major para coronel; e seus meios materiais também aumentam. Mantendo os tradicionais veículos blindados Cascavel (que possui um canhão de 90mm, da lamentavelmente falida Engesa), somam-se a eles novas viaturas blindadas Guarani (6x6) e Guaicurus (4x4). Roraima tem em suas extremidades norte duas áreas de reserva (Raposa Serra do Sol e Yanomami), mas ao longo de sua extensão surge o cerrado, região típica para utilização desses blindados sobre rodas.
Mesmo com a atual determinação de antecipar o planejamento estratégico do Exército, o Brasil possui uma dimensão continental, com uma infraestrutura que não completa adequadamente o centro-norte do País. Esses blindados que irão dotar o novo regimento de cavalaria em Boa Vista, RR, precisam se deslocar do centro-sul brasileiro por rodovias e pelo modal hidroviário (Rio Madeira, em RO), para, após uns 20 dias de deslocamento, chegarem em seu destino. Poderiam ir nas asas da nossa FAB? Se necessário for, essa é uma possibilidade viável.
Para encerrar esses pontos de atenção, fica a certeza de que o poder militar brasileiro, se não está no patamar que o Brasil merece e precisa (e não está, isso é uma afirmação!), tem totais condições de garantir a nossa soberania, assegurando a nossa inviolabilidade territorial conforme prevê o arcabouço legal do Estado brasileiro.
Chegamos na inserção do Brasil no tabuleiro da geopolítica mundial.
O Brasil se orgulha internamente de afirmar que exerce uma liderança regional, mas atualmente há controvérsias internacionais quanto a isso, apesar de um histórico brilhante consolidado no passado por ilustres brasileiros.
A atual política externa brasileira tem mostrado um afastamento pragmático que tem marcado as suas tradições ao longo do tempo. Sem esgotar o assunto, não é numa mesa de bar tomando uma cervejinha que se vai pacificar o leste europeu, bem como demorar para reconhecer os atos como terroristas praticados pelo Hamas foram verdadeiros “tiros no pé”. Aumenta-se o BRICS com países de linha ditatorial, num sinal de valorização econômica (e política) da China e da Rússia; e se vê a Índia ganhar poder e prestígio, atuando de maneira exemplar e silente.
Dentro da importância de se ter uma expressão militar forte e dissuasória, um dado é muito preocupante. Tomando-se por base o PIB mundial, 2,2% desse PIB é a média de aplicação no setor Defesa. Já no Brasil, apesar de todo o esforço de convencimento do Ministro da Defesa e dos três Comandantes de Força, ainda estamos na casa de 1,2% do nosso PIB. E não me venham dizer que a indústria de defesa não gera empregos e renda, pois isso é uma grande mentira. São aproximadamente 3,0 milhões de empregos diretos e indiretos gerados pela Base Industrial de Defesa e Segurança, com um saldo médio de 5,0% de todo o PIB brasileiro.
Voltando a o Essequibo, o que se pode esperar de uma liderança regional é uma postura mais enfática e sem bravatas, seguindo aquele pragmatismo que sempre marcou a diplomacia brasileira. E fica um receio: não há vazio de poder, ou seja, se o Brasil nada ou pouco fizer, alguém fará, e isso poderá não estar alinhado com o que se espera de um Brasil soberano.
Para encerrar esses breves pensamentos, toda e qualquer análise que se realiza neste momento considera dados de Inteligência que estão na nossa frente, alinhados com tendências que nos permitem elaborar cenários. E tudo isso é muito dinâmico. Assim, cabe aos decisores em todos os níveis acompanhar essas evoluções e manobrar conforme as necessidades, com oportunidade e racionalidade. É isso que se espera de um Brasil gigante.